quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Aconchego.

Eu estou em pé, descalça, no alfalto quente, não sei quanto tempo mais conseguirei manter os pés firmes aqui, às vezes dou certos pulos, e passos para frente ou para trás, ninguém gosta muito de caminhar descalça sobre o asfalto quente. Nem eu. O fato é que a vida está me desafiando à algum tempo. Quando se está de pé aqui, no meu lugar, a gente chega a pensar em tudo o que é capaz de aguentar. Sobre o asfalto quente, as pessoas sempre passam correndo, correm de um lado para o outro da calçada, dando a menor quantidade possível de passos. Todo mundo evita. Só quem permanece alguns minutos na quentura, é quem perdeu ou achou alguma coisa muito bonita, digna de admiração. Vejamos, se eu encontrasse meia dúzia de trevos de quatro folhas, amarrados com uma fita vermelha e existisse, quem sabe, uma joaninha que queria proteger suas minúsculas pernas da quentura, e por tal motivo, estaria sobre os trevos de quatro folhas. Talvez, quem sabe, se existisse tal coisa e tal joaninha, eu perderia minutos aqui, sou daquelas pessoas que possuem um encanto natural pelas coisas, e veja bem, ainda assim, não seriam todas as pessoas que fariam o mesmo, e quando falo de gente que possui encanto natural, acredite, eu falo de pouca.


A minha dificuldade era exatamente essa, eu estava ali, levantando as pontinhas dos dedos devagar, e depois, usando-as para suspender o calcanhar, confesso a você que no início eu não estava gostando muito da experiência. Mas eu, que sou muito adaptável, comecei a entender como funcionava o mecanismo dos pés ali em cima, com alguns saltos, alguns passos, e as levantadas de dedos ou calcanhares a gente aprende a suportar alguns minutos. Até, que a vida me pregou uma peça, me desafiou a ficar ali em cima, a maior quantidade de tempo que eu pudesse, a vida é meio desgraçada às vezes, fez isso só porque sabe que eu tenho um total apego pelos desafios, esses são uns dos poucos mistérios que me encantam. Me prometeu que a calçada do outro lado seria linda, gelada e com sombra, a dor dos pés passaria e existiriam águas e uvas se eu cumprisse o desafio, e a cada dia, eu tinha o direito de dar mais um passo. O início foi tranquilo e, bem como disse, de tão adaptável que sou, avancei bastante nos primeiros dias. Descobri que durante o caminho apareceriam várias maravilhas e que por mais que o asfalto queimasse, a brisa fresca e a chuva doce, amenizavam qualquer dor, acredite que encontrei até algumas inusitadas pétalas de rosa pelo caminho, vi desenhos em nuvens e adimirei maravilhada quase 246 arco-íris. Os dias foram passando, e eu, caminhando. Alguns trovões me atrasavam e me assustavam, mas tudo era compensado quando a chuva passava. O asfalto até ficava morno.

Sou um tanto indecisa e confesso que acabei por desistir da outra calçada algumas vezes e me arrependi no meio do caminho, permaneci. Adiei tanto a minha partida que acho que acostumei com o asfalto quente, e voltar para as lajotas macias dentro do conforto de casa me parecia um tanto estranho. É certo de que os meus pés ficariam mais satisfeitos. Mas talvez, não seria igual olhar as nuvens, ou os arco-íris pela minha janela. Talvez eu precisasse estar ali.

Então, gritei pela vida, contei que o outro lado da calçada não me interessava mais, que eu havia adorado mesmo o asfalto quente, mas que eu não me contentaria em viver ali pra sempre. Mesmo já acostumada com a quentura, eu sentia que aquilo não era normal. Eu andava sentindo a necessidade da estranheza da latoja macia, eu queria saber como era de novo. A vida me disse que eu poderia desistir quando eu quisesse. E eu o fiz, depois de anos adiando e dificultando a minha própria chegada, eu o fiz. Eu desisti. Entrei em casa e quase chorei ao pisar frio da lajota e ver um teto tão baixo comparado ao céu lá fora. Mas, o costume veio, e a cada dia, aquilo me parecia mais normal.

Fico feliz em dizer que hoje, assim como todas as pessoas normais, eu prefiro a lajota macia. Mas me envergonho de dizer, que as vezes sinto saudade e corro pra janela pra olhar as nuvens e o arco-íris. Sinto a brisa por um quadrado e a chuva doce não me alcança mais. Mas tenho a liberdade de visitar todos os meus cômodos, e de vez em quando faço café para uma companhia. Ninguém ficava muito tempo no asfalto quente tentando me convencer a voltar pra casa, as visitas eram breves e ninguém nunca conseguia.

Hoje, a minha lajota macia me aconchega e me abraça, eu caminho nela o quanto quero e vou onde sentir vontade, tenho uma liberdade linda, onde só o que me prende é a preferência, a admiração e o amor que eu criei pela lajota macia. E adivinha, de tão feliz que estou, hoje acabei por abrir janelas maiores, ando subindo andares e agora até tenho um terraço. Estou mais perto das nuvens e dos arco-íris, a brisa agora é mais forte e posso ter a chuva doce quando quero, agora ela cai mais forte em mim. Acredite, justo eu, que crucifiquei tanto a vida e nunca quis nada do mundo, precisei conhecer e me apaixonar pelo asfalto quente para então perceber que nem conhecendo as maiores maravilhas do mundo, se eu não quisesse estar ali todos os dias, eu não deveria ficar. Acho que a vida acaba por pregar tantas peças na gente, para nos sentirmos com a obrigação de mudá-la.

O asfalto quente sempre vai estar ali no mesmo lugar. E eu e a liberdade que estou aprendendo entender construíremos o mundo que tanto queríamos no aconchego da lajota macia. E veja bem, eu e a vida passamos a nos gostar tanto, que agora, além da lajota macia, encontrei todas as maravilhas no meu mundo. Sem precisar do asfalto quente.

Tânia F. Quaresma.

2 comentários:

  1. Às vezes quem permanece alguns minutos na quentura é porque muito se acostumou -lentamente- com o morno da vida.

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  2. O asfalto quente queima um pouco os pés e agonia um pouco a vida com aquele eterno procurar a melhor posição, mas é só estando lá que corremos o risco de encontrar outros pés também assados, só que serelepes o bastante para o asfalto não ter tempo de queimar, eles nos fazem correr tão rápido e nos dão abraços tão apertados que tiram qualquer pezinho cansado do chão. Esses pés serelepes as vezes nos levam onde o asfalto termina e a grama começa, só aí entendemos que o êxtase da grama não faria sentido sem os anos pisando no asfalto quente. Crescer dói, e de nada adianta correr pra lajota lisa, esperar o tempo passar e olhar o arco-íris da janela. Desistimos do caminho de asfalto quente pulando pra lajota e acabamos sem saber que lá no final tinha grama, acabamos sem saber de todas as possibilidades que a vida tinha. Abrimos mão da verdadeira e completa liberdade em troca de uma falsa, porém confortável, que a lajota nos dá, mas o que é sentir a chuva do terraço quando posso escolher entre as chuvas do mundo inteiro?
    Não faz isso com esses pezinhos, existem caminhos que se abrem uma vez pra nunca mais, não esteja na sua lajota, volte pro asfalto, eu vou com você.

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